Frequentemente, alguns conceitos acadêmicos das ciências sociais costumam ultrapassar os muros das universidades para ganhar o mundo. Certamente o termo modernidade líquida é um deles.
Uma das causas para a sua popularização, muito provavelmente, foi a necessidade que as pessoas sentiram de explicar as transformações sociais ocorridas nas últimas décadas. Há um sentimento no ar de que nada está onde deveria, que tudo passa muito rápido. Ou talvez, que mesmo antes que possamos nos acostumar com os fatos da vida e com o mundo que nos rodeia, tudo já mudou, e é hora de partir. É como se precisássemos estar o tempo todo recomeçando.
Nesse contexto, cabe praticamente tudo e todos que conhecemos. A velocidade gera incertezas. Não é possível saber até quando manteremos nossos empregos atuais. Também não há como saber se nossos relacionamentos afetivos terão futuro. A ideia de comunidade dá lugar ao individualismo, levando os indivíduos à alienação e à fuga pelo consumo de bens que também perdem seu valor rapidamente.
A vida nos faz ir em busca de respostas e, dentre tantas disponíveis, certamente Bauman pode nos dar algumas pistas do que anda acontecendo com o mundo e com nós mesmos.
Modernidade sólida x modernidade líquida
Em contraste ao termo modernidade líquida, Bauman utiliza o termo modernidade sólida. Antes, as relações sociais eram mais duradouras em todos os sentidos. As carreiras profissionais, os relacionamentos afetivos e todas as relações sociais às quais os indivíduos estavam ligados tendiam a durar pela maior parte das suas vidas.
Bauman afirma que o modelo da modernidade sólida era a fábrica fordista. Um mundo que remete à repetição, mas também a uma estrutura social ancorada em instituições mais fortes. Os produtos das fábricas duravam mais, os relacionamentos também e os indivíduos tinham mais certezas e dúvidas.
Antes de continuarmos, é importante percebermos que ambos os modelos sociais analisados têm problemas. Inclusive alguns deles, como as desigualdades sociais, a exploração dos trabalhadores, etc., têm se intensificado de um para o outro.
Por exemplo, um emprego, um casamento ou qualquer outro tipo de relacionamento social que devesse durar para toda a vida, certamente poderia se transformar em um problema de difícil solução. Por outro lado, existiam valores aos quais se poderiam agarrar. E ainda que a vida fosse difícil, com certeza, com base em um conjunto de instituições sociais solidas às quais se estava ligado, era possível pelo menos saber o que viria em seguida.
Na modernidade líquida, as coisas se passam de forma diferente. As instituições enfraquecem e a velocidade aumenta. As opções são variadas e, acredita-se, poder escolher a vida que quiser para si. Entretanto, não é possível dar conta de tantas coisas para escolher.
É como se o indivíduo tivesse a possibilidade de viver várias vidas, mas como só tem o tempo de viver uma, começa o problema. O desenvolvimento das tecnologias está diretamente ligado a esta questão. A vida foi descentralizada. Recebemos uma quantidade de estímulos sociais gigantesca. Algo impensável para alguém que viveu há algumas gerações atrás.
A precarização do trabalho
Quanto tempo leva para que alguém domine uma profissão realmente bem? Penso que é uma pergunta que devemos fazer a nós mesmos atualmente. A ideia de profissão sempre esteve ligada à ideia de dominar uma arte, um ofício, um fazer que levava muito tempo para aprender e que se aperfeiçoava por toda a vida. Do ponto de vista da segurança para produzir algo, esse longo tempo desenvolvendo uma tarefa era benéfico.
Um artesão, uma operária, um professor, etc. viviam parte considerável das suas vidas no universo daquela profissão. Eventualmente poderiam mudar de emprego, mas geralmente seguiriam pelo menos na mesma área de conhecimento. Era possível um planejamento de vida. Em geral, os filhos seguiam as profissões dos pais, e em muitos casos isso se perpetuava por várias gerações.
Atualmente, a situação mudou. Ainda na escola, costumam dizer para os jovens que se preparem para estudar muito, pois terão várias profissões durante a vida. O discurso é motivador, traz a ideia de liberdade e de capacidade de dominar o próprio destino. Infelizmente, ele esconde a precarização do mundo do trabalho em tempos de modernidade líquida.
Pensando no tempo necessário para dominar realmente os conhecimentos e ter a experiência necessária para fazer qualquer trabalho bem feito, é difícil convencer alguém de que ter várias profissões durante a vida seja algo positivo. Atualmente, as profissões e os empregos também são líquidos. Quase ninguém fica muito tempo na mesma empresa. Poucos permanecem na mesma área. Os vínculos de amizade se perdem, reduzindo-se a uma rede de contatos superficiais.
Nesse contexto, cada um está muito ocupado estudando uma coisa nova, se preparando para uma nova vaga. Basicamente, em relação ao trabalho e à vida, vive-se no futuro em detrimento do presente. E o presente se desorganiza, o que gera mais tensão e insegurança.
O enfraquecimento dos laços pessoais
No campo dos relacionamentos afetivos, a modernidade líquida também traz fortes modificações. Os casamentos não duram mais para sempre. As amizades se limitam à lógica da conexão e desconexão. No ambiente de trabalho, a tendência é que o indivíduo colecione, em um lugar remoto da memória ou lista de contatos de redes sociais, vários grupos de ex-colegas que estão cada vez mais distantes.
Quando Bauman escreveu o livro “Modernidade líquida”, as redes sociais ainda não existiam. A obra data do fim da década de 1990 e as redes surgem por volta de 2004. O diagnóstico social que ele faz no livro se intensifica com as redes. Os laços sociais se enfraqueceram enquanto cresceu a virtualização e, consequentemente, a quantidade de pessoas às quais todos tiveram acesso. A quantidade pode iludir por um tempo, mas o que importa, do ponto de vista das relações sociais, é a qualidade e a profundidade dos laços estabelecidos.
Como ser feliz em um emprego ou profissão se existem tantas outras para ganhar a vida? Dá para ser feliz em um relacionamento afetivo se há milhares de possibilidades nas redes? Há satisfação pessoal possível, se, por mais que você faça tantas coisas, sempre há alguém nas suas redes sociais que atingiu a perfeição?
Nos últimos anos, esse processo tem avançado. É preocupante perceber como o isolamento e as interações sociais, mediadas quase exclusivamente pelas redes sociais, estão causando um modelo de socialização bastante problemático. A interação presencial, mais que uma necessidade, é um aprendizado necessário à vida humana.
Bauman nos mostra o quanto estamos isolados atualmente. Cada um correndo, por conta própria, tentando viver o maior número de experiências possíveis. Na vã tentativa de consumir a vida na forma de produtos, não percebemos que talvez, insistindo nessa forma de viver, descartáveis também, somos nós mesmos.