O capitalismo e a corrosão do caráter

Estaria o capitalismo levando a uma corrosão do caráter? Richard Sennett pode nos ajudar a refletir sobre essa questão.

Talvez uma das primeiras coisas que um estudante de Sociologia ouça é que nós, humanos, somos seres gregários. Que vivemos em grupo e dependemos de diferentes formas dos nossos semelhantes. Somente sob condições muito restritas, um ser humano poderia viver isolado. E ainda que conseguisse sobreviver completamente só, provavelmente nunca desenvolveria plenamente suas capacidades humanas.

Émile Durkheim, um dos fundadores da Sociologia, preocupado em entender como a sociedade moderna se mantinha coesa, chamou a atenção para as relações de interdependência. Apesar de tantas diferenças, o todo social funcionaria como um grande organismo. No esquema da divisão do trabalho social, cada um faria a sua parte, contribuindo para o funcionamento do todo. Existiria uma solidariedade orgânica nesse modelo. A sociedade funcionaria como um grande organismo e sua coesão se tornava possível a partir de um conjunto de valores morais compartilhados.

Viveríamos assim em um delicado e complexo processo de interdependência e autonomia. Entretanto, quanto mais se desenvolve a sociedade capitalista, maior parece a ideia — ou ilusão — de independência dos indivíduos em relação à sociedade. A ideia de que, tendo dinheiro, não precisaríamos de ninguém é um dos motores do individualismo que governam nossos dias. Os indivíduos tendem a esquecer que dependem, em grau bastante elevado, dos demais.

Diversos autores vão discutir a relação entre indivíduo e sociedade no regime capitalista, demonstrando suas implicações. Neste texto, tomamos como referência alguns pontos da obra “A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo”, do sociólogo americano Richard Sennett e refletimos um pouco sobre solidariedade e coesão social, conceitos de Émile Durkheim.

A transição para o novo capitalismo

O contexto social e as relações de trabalho mudaram muito no período compreendido entre o final do século XIX e o fim do XX. Naquele momento, estavam em curso diversas lutas dos trabalhadores por garantias sociais. E a maioria dos direitos conquistados a duras penas se formalizou por meio da criação de regulamentações e leis. Criou-se um conjunto de regras burocráticas que organizavam a vida dos trabalhadores e os protegiam dos excessos da exploração.

O próprio sistema capitalista e o Estado moderno se organizavam em torno de uma imensa máquina burocrática que dava certa estabilidade, mas que também controlava excessivamente a sociedade em sua totalidade. Era o espírito da época. Algo que o sociólogo alemão Max Weber, escrevendo no início do século XX, chamou de jaula de ferro que se desenvolve historicamente a partir do processo de racionalização típico da modernidade.

Entretanto, diversas foram as mudanças que levaram o capitalismo a se transformar no último século. As crises recorrentes e a busca sempre desenfreada por lucros levaram a um enxugamento crescente do setor produtivo. Produzir em qualquer lugar do mundo se tornou realidade, o que fez com que muitos empregos desaparecessem em uma região para surgirem em outra, onde a mão de obra era mais barata.

A descentralização produtiva e terceirização se tornaram o padrão, o que fez muitos trabalhadores perderem ou reduzirem os vínculos com as empresas onde trabalhavam. Esse processo de desregulamentação não somente fez desaparecer vários direitos sociais, mas um mundo no qual era possível organizar a vida com certa estabilidade e previsibilidade.

Sennett aborda esta questão na sua obra, publicada no ano de 1998. Naquele momento, a globalização e o neoliberalismo estavam já em voga. A ideia era abrir os mercados, desburocratizar o estado, privatizar quase tudo e desregulamentar direitos trabalhistas, conquistados nas décadas anteriores.

O trabalho e a corrosão do caráter no novo capitalismo

Esse modelo de sociedade, que evoluiu desde então até os dias atuais, se caracteriza pela incerteza, instabilidade e sobretudo pelos riscos. Os trabalhadores tendem a perder estabilidade em seus empregos. E, no geral, não tem nem mesmo garantias de que permanecerão na mesma profissão por muito tempo. Todo o aparato de proteção social, típico do estado de bem-estar social, foi se desfazendo em nome da “liberdade” dos trabalhadores de não mais estarem presos à burocracia. Tudo passa a ser fluido.

Nesse contexto, a competição é a ordem do dia. Cada um responde por si e luta para conquistar e manter sua posição no mercado. Isso, obviamente, traz consequências para a vida dos indivíduos. A falta de garantias em um ambiente extremamente competitivo tem como uma das mais graves consequências a quebra da solidariedade social. A exploração que havia antes não deixa de existir, e até piora bastante. E as garantias conquistadas a duras penas vão se desfazendo, deixando todos à deriva.

No decorrer da obra, Sennett mostra como essa realidade faz com que se perca a solidariedade entre os trabalhadores. A competição corrompe a solidariedade e empregados em um mesmo ambiente de trabalho não se veem mais lutando por causas comuns, mas entre si, para manter seu emprego. Amizade, companheirismo e a ética se perdem.

Nesse processo há a corrosão do caráter. E a impressão que tenho a partir da minha leitura é a de que toda uma lógica gregária tão característica da vida humana ao longo de sua história é deixada de lado. Não são somente grupos antagônicos competindo entre si. Mas indivíduos isolados que não percebem a dependência que existe entre cada uma de nós e a sociedade, lutando sozinhos de forma inglória, contra tudo e contra todos. Todos em uma rua estreita e sem saída, chamada neoliberalismo.

As consequências pessoais

Inicialmente, Sennett compara duas gerações, pai e filho, que caracterizam bem o momento de transição. O pai, um homem simples, que trabalhava em um emprego fixo, organizou a sua vida de forma mais ou menos estável, conseguindo, com dificuldades, comprar sua casa própria e educar o seu filho. O filho demonstrava certa aversão ao modo de vida “controlado” do pai e buscava uma condição diferente, com menos controle e mais oportunidades.

Não ter uma carreira estável apresenta algumas características, como o fato de ter de se mudar de cidade várias vezes. A necessidade de estar disponível para os clientes todo o tempo e o fato de, ao empreender sozinho, não ter uma equipe, o leva a ter que fazer várias funções em sua própria empresa, já que não possui a estrutura de uma empresa mais estruturada.

A instabilidade financeira e o tempo de trabalho alongado, necessário para se manter no mercado, afetam a sua vida pessoal. Não há tempo para conviver com a própria família, sobretudo com os filhos, e ele se queixa disso. É como se, em alguns momentos, olhasse para o passado e necessitasse de uma vida minimamente estruturada, como a do pai, de quem diverge sobre o “controle excessivo” em prol da “liberdade” de empreender.

Nos momentos em que a contradição fica aparente para o próprio interlocutor, Sennett relata que o diálogo entre ele e o jovem profissional ficou difícil. Pois, nem sempre percebemos as contradições sociais nas quais estamos imersos e essa é uma das riquezas de um livro como este. Ele nos ajuda a perceber essas contradições e refletir sobre elas.

Deriva

Deriva, título escolhido para o capítulo inicial da obra, define bem a situação dos trabalhadores no mundo neoliberal. Quase 30 anos após a publicação da obra de Sennett, essa realidade escalou. A desregulamentação do trabalho e o avanço dos aplicativos praticamente colocaram as pessoas à disposição 24 horas por dia.

Fica claro que o preço da mudança foi alto e muito além do econômico, levando os indivíduos ao isolamento. Vínculos familiares, de amizade e de participação política são deixados de lado. A obra nos permite compreender como essa realidade no capitalismo favoreceu a corrosão do caráter.

Lendo Sennett em 2025, lembro da discussão sobre solidariedade na Obra de Durkheim e me pergunto: a seguirmos assim, que valores sociais vão manter a coesão social? Ou viveremos a anomia?