Vivendo na Sociedade do cansaço de Byung-Chul Han

A quantidade de estímulos que recebemos diariamente é inédita na história da humanidade. Ferramentas como o smartphone nos tornaram disponíveis 24 horas por dia. A velocidade da vida aumentou vertiginosamente e nós perdemos a medida do descanso e da intimidade. A exaustão provocada por este processo nos jogou na sociedade do cansaço.

Um lugar onde a pressa caminha de mãos dadas com o sentimento de não poder dar conta de tudo. No qual o medo de ficar de fora ou estar perdendo algo muito importante é sintoma generalizado. As referências que tínhamos, antes próximas, se fragmentaram, agora estão em toda a parte e em lugar nenhum.

O correr da vida me fez tomar conhecimento do livro de Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano, que trata do tema e tem sido valioso para a compreensão do que vivenciamos atualmente. É possível que suas reflexões sobre o espírito do tempo atual nos ajudem a encontrar a saída desse espaço onde a luz das telas tem nos ofuscado a visão para todo o colorido do mundo.

O excesso de positividade

Em tempos de disponibilidade integral, é difícil dizer não. Desconectar, estar ausente, não é uma alternativa. Atualmente, não conseguimos filtrar os estímulos que nos atingem todo o tempo e, mesmo que conseguíssemos, provavelmente não iríamos sentir vontade de fazer isso.

As redes sociais e o seu modelo de economia da atenção, no qual estamos imersos, são o espaço do excesso de positividade por excelência. O livro é de 2010 e, desde sua publicação, a situação ficou ainda mais complexa. Agora, além do lazer, das relações afetivas e de trabalho, praticamente todos os campos das nossas vidas acontecem ou são ditados nesses ambientes virtuais.

Tudo o que nos deixa indisponíveis, portanto, nos impede de responder aos estímulos que chegam sem parar por meio das notificações do smartphone tem sido evitado. A incapacidade momentânea de responder a uma das centenas de notificações tem gerado altos níveis de ansiedade nas pessoas.

Ato contínuo, impõe-se a necessidade de emitir uma opinião para todo e qualquer acontecimento que esteja nos trends. Não importa o tema ou se temos ou não algum conhecimento mais aprofundado sobre ele, é preciso demarcar posição e postar um ponto de vista. No caso de temas relacionados à política, a necessidade de resposta parece ser ainda mais urgente.

Na verdade, esse é um quadro de aparência. Vivemos, na realidade, em uma sociedade que exige de nós um esforço sobre-humano para acompanhar tudo e todos, na qual toda a negatividade foi suprimida.

Dessa forma, precisamos reconhecer que a ausência, o afastamento e a capacidade de dizer não são fundamentais para podermos viver bem. Devemos refletir sobre a importância de valorizarmos um mínimo de privacidade em certos espaços e momentos da vida. Pois, sem um descanso mínimo, nos desgastamos. O excesso de positividade pode ser psicologicamente devastador.

A cultura da autoexploração

Na sociedade do cansaço, todas as esferas das nossas vidas estão imersas nessa mesma lógica. No mundo do trabalho não seria diferente. Nele também, as relações são precárias e não se pode dizer não, ainda que já estejamos sobrecarregados. Lembremos que os empregos são precários, as relações instáveis e quase ninguém consegue prever o que vem logo adiante.

Muitas pessoas trabalham em áreas diferentes daquelas nas quais se formaram, fator que pode gerar uma insegurança muito grande no cotidiano das suas funções. É sempre importante refletir que, para dominar uma profissão e sentir segurança no que fazemos, precisamos de tempo e certa estabilidade. A incapacidade ou mesmo a incerteza de poder se manter por muito tempo em uma profissão gera uma ansiedade enorme.

Nesse contexto, perde-se a compreensão de que existem determinadas questões das nossas vidas que seriam melhor resolvidas coletivamente. As formas de representação, como sindicatos ou associações profissionais, estão fora de moda. Na verdade, vivemos a era do empreendedorismo. Trabalhar em uma empresa e ter sua carteira de trabalho assinada parece coisa do passado. A moda é ser “livre” e trabalhar por meio de aplicativos, em um contexto sem horários ou quaisquer garantias sociais.

Surge o sujeito do desempenho. Alguém que está sempre disponível e correndo atrás do trabalho e, dada a instabilidade da sua condição, está sempre pensando em alternativas. Nessas condições, além das dificuldades de viver no presente, o indivíduo também vive e precisa gerenciar o seu futuro incerto. 

É possível que essa sociedade da produtividade e da eficiência contribua para o elevado número de pessoas com síndrome de burnout e outros transtornos psicológicos. A ilusão da liberdade, que faz com que cada um assuma responsabilidades que são do conjunto da sociedade, como, por exemplo, ter que pagar pela própria aposentadoria, cobra um preço muito caro.

É possível uma saída da Sociedade do cansaço?

A crítica de Han se dirige a um tipo de cansaço que se dá pelo isolamento do indivíduo. Ironicamente, o excesso de meios de comunicação tem nos isolado e a quantidade assombrosa de informações que temos à nossa disposição tem nos alienado e consequentemente nos embrutecido. Os smartphones são quase uma parte do corpo humano e, devido aos seus aplicativos que causam dependência, estamos vendo uma espiral ascendente de todos os problemas elencados.

Por fim, é importante dizer que a sociedade do cansaço não existe fora do modelo de capitalismo atual, da financeirização, do neoliberalismo, da economia de plataformas, da destruição do meio ambiente e da precarização da vida humana. Como resultado, fake news, deep fakes e polarização são termos que fazem parte do cotidiano. Eles vêm mudando as realidades de pessoas, de países e do próprio mundo.

É difícil antever uma saída para esse quadro distópico. No entanto, anos depois da publicação da obra, percebemos a intensificação do que está descrito nela. O autor retrata várias questões em outros livros publicados posteriormente, nos ajudando a compreender a complexidade dos tempos atuais. A impressão é de que estamos cada vez mais isolados e que a própria civilização está entrando em crise. Há uma descrença geral na política e nas instituições. Infelizmente, as democracias se deterioram a olhos vistos.

Espero que, tendo um final feliz, diferente do conto de Bartleby, o célebre personagem de Melville citado por Han no penúltimo capítulo do livro, em algum momento possamos aprender também a dizer “Eu preferiria não”, e que, a partir daí, o equilíbrio se reestabeleça.

A modernidade líquida de Zygmunt Bauman

Frequentemente, alguns conceitos acadêmicos das ciências sociais costumam ultrapassar os muros das universidades para ganhar o mundo. Certamente o termo modernidade líquida é um deles.

Uma das causas para a sua popularização, muito provavelmente, foi a necessidade que as pessoas sentiram de explicar as transformações sociais ocorridas nas últimas décadas. Há um sentimento no ar de que nada está onde deveria, que tudo passa muito rápido. Ou talvez, que mesmo antes que possamos nos acostumar com os fatos da vida e com o mundo que nos rodeia, tudo já mudou, e é hora de partir. É como se precisássemos estar o tempo todo recomeçando.

Nesse contexto, cabe praticamente tudo e todos que conhecemos. A velocidade gera incertezas. Não é possível saber até quando manteremos nossos empregos atuais. Também não há como saber se nossos relacionamentos afetivos terão futuro. A ideia de comunidade dá lugar ao individualismo, levando os indivíduos à alienação e à fuga pelo consumo de bens que também perdem seu valor rapidamente.

A vida nos faz ir em busca de respostas e, dentre tantas disponíveis, certamente Bauman pode nos dar algumas pistas do que anda acontecendo com o mundo e com nós mesmos.

Modernidade sólida x modernidade líquida

Em contraste ao termo modernidade líquida, Bauman utiliza o termo modernidade sólida. Antes, as relações sociais eram mais duradouras em todos os sentidos. As carreiras profissionais, os relacionamentos afetivos e todas as relações sociais às quais os indivíduos estavam ligados tendiam a durar pela maior parte das suas vidas.

Bauman afirma que o modelo da modernidade sólida era a fábrica fordista. Um mundo que remete à repetição, mas também a uma estrutura social ancorada em instituições mais fortes. Os produtos das fábricas duravam mais, os relacionamentos também e os indivíduos tinham mais certezas e dúvidas. 

Antes de continuarmos, é importante percebermos que ambos os modelos sociais analisados têm problemas. Inclusive alguns deles, como as desigualdades sociais, a exploração dos trabalhadores, etc., têm se intensificado de um para o outro.

Por exemplo, um emprego, um casamento ou qualquer outro tipo de relacionamento social que devesse durar para toda a vida, certamente poderia se transformar em um problema de difícil solução. Por outro lado, existiam valores aos quais se poderiam agarrar. E ainda que a vida fosse difícil, com certeza, com base em um conjunto de instituições sociais solidas às quais se estava ligado, era possível pelo menos saber o que viria em seguida.

Na modernidade líquida, as coisas se passam de forma diferente. As instituições enfraquecem e a velocidade aumenta. As opções são variadas e, acredita-se, poder escolher a vida que quiser para si. Entretanto, não é possível dar conta de tantas coisas para escolher.

É como se o indivíduo tivesse a possibilidade de viver várias vidas, mas como só tem o tempo de viver uma, começa o problema. O desenvolvimento das tecnologias está diretamente ligado a esta questão. A vida foi descentralizada. Recebemos uma quantidade de estímulos sociais gigantesca. Algo impensável para alguém que viveu há algumas gerações atrás.

A precarização do trabalho

Quanto tempo leva para que alguém domine uma profissão realmente bem? Penso que é uma pergunta que devemos fazer a nós mesmos atualmente. A ideia de profissão sempre esteve ligada à ideia de dominar uma arte, um ofício, um fazer que levava muito tempo para aprender e que se aperfeiçoava por toda a vida. Do ponto de vista da segurança para produzir algo, esse longo tempo desenvolvendo uma tarefa era benéfico.

Um artesão, uma operária, um professor, etc. viviam parte considerável das suas vidas no universo daquela profissão. Eventualmente poderiam mudar de emprego, mas geralmente seguiriam pelo menos na mesma área de conhecimento. Era possível um planejamento de vida. Em geral, os filhos seguiam as profissões dos pais, e em muitos casos isso se perpetuava por várias gerações.

Atualmente, a situação mudou. Ainda na escola, costumam dizer para os jovens que se preparem para estudar muito, pois terão várias profissões durante a vida. O discurso é motivador, traz a ideia de liberdade e de capacidade de dominar o próprio destino. Infelizmente, ele esconde a precarização do mundo do trabalho em tempos de modernidade líquida.

Pensando no tempo necessário para dominar realmente os conhecimentos e ter a experiência necessária para fazer qualquer trabalho bem feito, é difícil convencer alguém de que ter várias profissões durante a vida seja algo positivo. Atualmente, as profissões e os empregos também são líquidos. Quase ninguém fica muito tempo na mesma empresa. Poucos permanecem na mesma área. Os vínculos de amizade se perdem, reduzindo-se a uma rede de contatos superficiais.

Nesse contexto, cada um está muito ocupado estudando uma coisa nova, se preparando para uma nova vaga. Basicamente, em relação ao trabalho e à vida, vive-se no futuro em detrimento do presente. E o presente se desorganiza, o que gera mais tensão e insegurança.

O enfraquecimento dos laços pessoais

No campo dos relacionamentos afetivos, a modernidade líquida também traz fortes modificações. Os casamentos não duram mais para sempre. As amizades se limitam à lógica da conexão e desconexão. No ambiente de trabalho, a tendência é que o indivíduo colecione, em um lugar remoto da memória ou lista de contatos de redes sociais, vários grupos de ex-colegas que estão cada vez mais distantes.

Quando Bauman escreveu o livro “Modernidade líquida”, as redes sociais ainda não existiam. A obra data do fim da década de 1990 e as redes surgem por volta de 2004. O diagnóstico social que ele faz no livro se intensifica com as redes. Os laços sociais se enfraqueceram enquanto cresceu a virtualização e, consequentemente, a quantidade de pessoas às quais todos tiveram acesso. A quantidade pode iludir por um tempo, mas o que importa, do ponto de vista das relações sociais, é a qualidade e a profundidade dos laços estabelecidos.

Como ser feliz em um emprego ou profissão se existem tantas outras para ganhar a vida? Dá para ser feliz em um relacionamento afetivo se há milhares de possibilidades nas redes? Há satisfação pessoal possível, se, por mais que você faça tantas coisas, sempre há alguém nas suas redes sociais que atingiu a perfeição?

Nos últimos anos, esse processo tem avançado. É preocupante perceber como o isolamento e as interações sociais, mediadas quase exclusivamente pelas redes sociais, estão causando um modelo de socialização bastante problemático. A interação presencial, mais que uma necessidade, é um aprendizado necessário à vida humana.

Bauman nos mostra o quanto estamos isolados atualmente. Cada um correndo, por conta própria, tentando viver o maior número de experiências possíveis.  Na vã tentativa de consumir a vida na forma de produtos, não percebemos que talvez, insistindo nessa forma de viver, descartáveis também, somos nós mesmos.

A rede e o ser: algumas notas sobre o texto de Manuel Castells

No texto a seguir, tecemos alguns comentários sobre o prólogo da trilogia “A era da informação: Economia, Sociedade e Cultura”, do sociólogo espanhol Manuel Castells, intitulado “A rede e o ser”, publicado nos anos 1990, trabalho que nos ajuda bastante a entender melhor nosso mundo atual. Não se trata de um resumo, fichamento ou trabalho acadêmico sobre a obra, são somente algumas reflexões e relações que me ocorrem enquanto leitor e que espero que sejam úteis.

Reestruturação global do capitalismo

No fim do milênio, as transformações sociais decorrentes do desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação se acentuaram. Em pouco tempo, as estruturas sociais mudaram radicalmente. Desenvolveu-se uma nova relação entre a economia, o Estado e a sociedade. Dessa forma, o mundo estava mais interligado e isso teve consequências para a forma de produzir e conviver em sociedade.

Até então, a comunicação frequente entre as mais diversas sociedades humanas não era nada inédito. A história está repleta de encontros entre culturas distintas. Entretanto, as condições para que esses contatos ocorressem geralmente eram precárias devido às dificuldades de comunicação e transporte existentes. O desenvolvimento e a disseminação dessas tecnologias, desde o seu início, vão derrubando essas barreiras.

No caso das transformações observadas por Castells já no prólogo de sua obra, intitulada “A rede e o ser”, as instituições sociais, ou seja, as regras que moldam nossa forma de ser e viver no mundo, se transformam, dado o surgimento de novas ferramentas que modificam nossas atividades diárias. Consequentemente, também mudam nossas relações com os outros e com a própria natureza.

A percepção de tempo e o espaço mudam

David Harvey, geógrafo inglês, na sua obra “A condição pós-moderna”, chama a atenção para um fenômeno típico deste período que podemos relacionar a esta leitura. A organização da vida muda a partir da nova relação que passamos a ter com o espaço e com o tempo. As distâncias são ressignificadas a partir das facilidades no deslocamento. O espaço geográfico deixa de ser um grande empecilho para as relações humanas. Transportar pessoas e mercadorias de um lado para outro do planeta se tornou possível, e desde então, um processo cada vez mais rápido. Por outro lado, o tempo se expande por meio das tecnologias de informação. Enviar uma mensagem para qualquer lugar do planeta se tornou algo em tempo real, com aparelhos como o telefone, o fax. Tudo isso por meio da comunicação por satélite.

A forma de produzir mudou. A descentralização da produção e a terceirização da mão de obra passaram, desde então, à ordem do dia. Se tornou possível produzir em outro continente, ter a sede da empresa em outro e vender para qualquer lugar do mundo. Nas palavras de Castells, deste processo emerge uma sociedade capitalista e informacional.

Essa mudança afeta diferentes partes do mundo de maneira diferente. Em poucas décadas, o brilho atribuído à globalização desvanece e sua configuração social problemática se torna patente. E logo surgem alternativas, nem sempre melhores, conforme possamos refletir atualmente.

A popularização da internet

O envio de cartas, o telégrafo e posteriormente as linhas telefônicas, gradualmente, foram permitindo uma maior integração mundial. Possibilitaram a ampliação das relações sociais de forma geral, e as de produção e consumo, em particular. Já se negociava largamente em escala global desde o mercantilismo. Mas a partir da década de 1970 do século XX, esse processo deu um salto. Uma das ferramentas tecnológicas mais poderosas já criadas pela humanidade, a internet, começava a se popularizar. A rede e o ser se encontram.

Inicialmente uma ferramenta de uso militar, cujo objetivo era descentralizar e guardar informações sensíveis ao mesmo tempo, em vários lugares, em caso de guerra. Depois se tornou muito usada nas universidades, dado que também nasce em ambientes de pesquisa acadêmica, e nesse período, se desenvolveu de forma mais ou menos anárquica e libertária, no contexto do mundialmente conhecido Vale do Silício. Já nos anos 1990 começa a se popularizar entre parcelas crescentes da população. Aparecem os provedores de internet que dão acesso a contingentes populacionais crescentes. A partir daí, a descentralização em andamento foi amplificada em escala gradativa.

A lógica da internet mudou bastante desde a sua criação até ser apropriada por grandes empresas que, atualmente, monopolizam o acesso à informação e moldam nossas personalidades, nos guiando por um circuito fechado de consumo. Poucos anos depois, perguntar para alguém quando ela se conectava ou quanto tempo ficava conectada não fazia mais sentido. Estávamos quase todos conectados 24 horas por dia. E cada vez mais, atividades cotidianas das nossas vidas estavam sendo desenvolvidas ou intermediadas por meio da internet. O consumo é uma dessas principais atividades. Logo, o acesso se expande, inclusive para os que vivem em condições mais precárias.

Quando Castells publicou seu texto, essa condição ainda não era a realidade de todos, ou pelo menos, ainda não era como nós a percebemos hoje. Uma vez que, atualmente, a realidade social decorrente da vida nesses novos ambientes digitais se tornou o espaço no qual nós mais nos conectamos a outros seres humanos. A rede e o ser, talvez não existam mais um sem o outro.

A rede e o ser na sociedade informacional

A sociedade informacional é uma sociedade capitalista, que se reinventa a partir do uso das tecnologias. A partir dessa simbiose, passamos a viver em outro contexto. Nele, o acesso à cultura, ao entretenimento, ao conhecimento e ao próprio trabalho é diferente. Entretanto, ironia das ironias, pode ser que esse amplo processo de criação de redes digitais e todas essas formas de iteração por ele possibilitadas tenham, de certa forma, contribuído para afastar as pessoas.

Uma das questões particularmente relevantes desse processo diz respeito à construção das identidades sociais. Antes, elas se constituíam localmente, mas com o acesso a um universo cultural tão amplo, as referências sociais passaram a ser globais. Anteriormente, ao se desenvolver, o indivíduo tinha como referência aqueles que viviam no seu entorno, na sua comunidade. Com as redes, essa comparação passa a ser global. Isso eleva bastante as expectativas individuais, e acabou por gerar problemas sérios, que outros autores nas décadas seguintes estudaram com mais profundidade.

No quadro geral, com essa perda de referência, os indivíduos passam a ter na identidade uma das únicas fontes de significado da vida. A grande abertura que a internet possibilitou, e que foi tão saudada como a nova ágora digital, na verdade, causou uma desestruturação das instituições sociais, como nós as conhecíamos, e da própria identidade dos indivíduos.

As próprias políticas e ações sociais passaram a ser desenvolvidas a partir das identidades. Assim, se antes se falava de luta de classes, interesses dos trabalhadores, desenvolvimento de políticas voltadas ao bem-estar social, indistintamente entre os diversos grupos sociais, essa tendência mudou radicalmente. Desde então, há uma tendência de ampla desestruturação das organizações, com o enfraquecimento das instituições sociais e a desarticulação dos movimentos sociais. É como se o foco das relações saísse dos grupos e fosse focado nos indivíduos. Este é o contexto de “A rede e o ser”.

O que veio a seguir…

Enfim, é particularmente interessante ler a “rede e o ser” atualmente, pois percebemos as mudanças ocorridas de forma mais clara. Vários problemas tão comuns atualmente já se colocavam naquela época. Outros autores, como Zygmunt Bauman, com a sua discussão sobre a modernidade líquida, e Byung-Chul Han, com a sua Sociedade do cansaço, nos ajudam a compreender o que veio acontecer depois e o que vivenciamos agora em tempos de smartphones.

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As redes e a “A metrópole e a vida mental” de George Simmel

Uma leitura de “O Homem da multidão”, de Edgar Allan Poe

A Literatura e a Sociologia podem render bons encontros e nos ajudar a compreender de forma mais ampla o contexto social. Neste breve texto, propomos uma pequena leitura sociológica do “Homem da multidão” de Poe, com o auxílio de alguns conceitos de George Simmel.

O Homem da multidão

Em uma grande cidade, certo indivíduo observa uma multidão que passa diante dos seus olhos. Um movimento típico do fenômeno urbano. Como distração, tenta classificar os passantes por meio dos mais diversos tipos e enquadramentos sociais.

A descrição nos dá conta de expressões carrancudas e obstinadas. Alguns gesticulavam, aparentemente falando consigo mesmos, como se estivessem sós no meio da multidão. É notável a falta de conexão entre esses indivíduos, que, mesmo quando chegam a se esbarrar, se cumprimentam amistosamente e seguem seu caminho apressadamente.

De repente, um rosto em especial lhe chama a atenção. Um senhor idoso, cuja descrição da fisionomia, ao contrário do que o autor nos leva a crer, provavelmente não o distinguiria fortemente de qualquer outra das pessoas que por ali transitavam. Em todo o caso, ele sente o impulso de levantar e seguir aquele homem.

Tem início o seu estudo mais aprofundado daquela personalidade. O homem da multidão, seguido desajeitadamente, dadas as condições, não faz nada de diferente ou inesperado. Após seguir o desconhecido por várias horas, nosso “analista social” atribui, como uma de suas principais características, a necessidade de estar sempre no meio da multidão. Sempre que uma aglomeração começa a dispersar, há uma manobra para ir de encontro a outro aglomerado.

Uma leitura sociológica

Lendo o texto a partir de uma perspectiva sociológica, é possível dizer que o conto de Allan Poe retrata o ambiente que Simmel analisa no seu texto “A metrópole e a vida mental”, sobretudo no que diz respeito à atitude “blasé”, dos indivíduos que vivem nas grandes cidades. De fato, ambos estavam observando o mesmo período histórico no mundo ocidental. Um através da literatura, o outro da Sociologia.

Poe não fala do contexto social, nem das implicações das tecnologias no comportamento. Nós que estamos tentando fazer essa ligação com ajuda da Sociologia. O conto “O Homem da multidão” foi publicado em 1840. O século XIX viveu a plena expansão da urbanização, da industrialização e todas as transformações tecnológicas e sociais surgidas nesse contexto. Mudanças cujo desenrolar podemos ver claramente hoje em dia, em crescimento acentuado.

Assim como alguns livros não se deixam ler, alguns segredos não se deixam revelar. Essa é uma das mensagens do conto de Poe. O mistério que envolve cada um de nós em uma sociedade moderna, com tantas informações e tantas pessoas, constituindo um universo infinito de informações. Por fim, sobressai a necessidade de fixar o olhar em algo ou em alguém. E por mais comuns e banais que sejam, elas despertarão um interesse imenso.

É curioso notar que as tecnologias de informação tenham evoluído tanto no sentido de publicizar a vida privada de todos. Nessa imensa casa de vidro, que se tornou o mundo das redes sociais, enfim, os mistérios de Poe estariam resolvidos. Entretanto, isso teve um preço.

Talvez a fragilidade ou falta de conexão, típica do mundo moderno, traga consigo o leve desespero de não conseguirmos uma conexão satisfatória com os outros, mesmo que existam tantas possibilidades quanto pessoas passando diante de si. Estaria o homem da multidão buscando alguém semelhante a si?

As redes e a “A metrópole e a vida mental” de George Simmel

Ao contrário do que possamos acreditar, nem todas as grandes transformações sociais acontecem de forma rápida. Talvez poucas delas sejam perceptíveis por nós em nosso curto espaço de vida, tão breve quando relacionado ao tempo histórico. Outras, de tão ferozes e abruptas, tendem a desorganizar nosso pensamento, nossas instituições sociais e consequentemente mudam profundamente nossa forma de viver.

Quem nasceu até as duas últimas décadas do século XX tem testemunhado e sentido, na pele, uma transformação social de larga amplitude. Nos referimos às novas tecnologias de informação e comunicação, que passaram a transformar nossas vidas de forma cada vez mais acelerada. Temos a impressão de viver em uma velocidade crescente, sobretudo se fomos socializados ainda na era pré-internet.

Paira no ar do nosso tempo a sensação de uma luta desesperada por atenção. Além do sentimento de necessidade de estarmos por dentro de tudo e responder a todos os estímulos de forma cada vez mais rápida. Há também o medo disseminado de ficar por fora de algo, mesmo que não se saiba bem o que. Reina a incapacidade de concentração e de não saber exatamente aonde ir, mesmo diante de tantos caminhos a seguir. Sobra o cansaço, a desinformação e a solidão no meio de tantas conexões.

O quadro atual não nasce com a disseminação da internet.

Em 1903, o sociólogo alemão George Simmel (1858–1918) publicou um texto intitulado “A metrópole e a vida mental”. Este texto também é traduzido com o título “As grandes cidades e a vida do espírito”. Nele, o autor chama a atenção para as transformações ocorridas na vida dos indivíduos a partir da quantidade de estímulos recebidos nas grandes cidades. Embora não tenha vivido em nossa época, ele antecipa pontos essenciais para a compreensão do que estamos vivendo atualmente, sobretudo no que diz respeito às novas tecnologias.

Vivendo em sociedades mais simples, em cidades pequenas ou vilarejos, com populações menores e em tempos de poucas ferramentas de comunicação, os laços sociais se desenvolviam em maior profundidade. Em uma pequena comunidade, era provável que todas as pessoas se conhecessem bem. E, muito embora não tivessem relações sociais diretas, pelo menos teriam uma noção da história daqueles que fazem parte da sociedade local.

A mudança para as grandes cidades transforma radicalmente essa forma de relacionamento com os outros. É impossível para qualquer indivíduo conhecer todas as pessoas com as quais se relaciona no seu dia a dia. Dessa forma, os vínculos sociais enfraquecem, as relações sociais se tornam superficiais. Eis o quadro social típico descrito na metrópole e a vida mental.

Seria psicologicamente sofrível dar conta de todos os estímulos da vida na grande cidade. Tanto seria impossível ter alguma informação sobre todas as pessoas com as quais nos relacionamos, como o desenvolvimento das ferramentas de comunicação nos sobrecarregam de informações de todo o tipo. Sobretudo de informações irrelevantes.

A atitude blasé

Assim, os indivíduos desenvolveram uma espécie de capa protetora para se protegerem do excesso de estímulos que a grande cidade lhes proporcionava. Simmel a chama de “Atitude blasé”, que seria algo como ficar indiferente a quase tudo e todos.

Seria uma estratégia até certo ponto compreensível, dado o ambiente moderno. Mas há um problema. Se cada um cria uma barreira que o protege e o libera de ter que dar atenção aos demais, os outros também desenvolvem o mesmo mecanismo. Logo, aquele que se tornou indiferente, se sente só e começa a buscar desesperadamente atenção.

Não precisa ir muito longe para perceber. Provavelmente, basta parar de olhar a tela e olhar para qualquer lado.

A leitura nos possibilita uma chave interpretativa da realidade que nos diz que, no estágio atual, vivemos de forma ainda mais aprofundada o quadro apontado por Simmel no início do século XX. Mas também pode nos dar pistas que nos ajudem a encontrar saídas para o sentimento de caos e desestruturação das relações sociais tão referidos hoje em dia.

“A metrópole e a vida mental” merece uma leitura atenta, o que essas poucas linhas não substituem. O texto traz outras questões para além da atitude blasé. Mas a partir desse conceito, já podemos nos distanciar um pouco das nossas relações sociais imediatas, nas quais estamos imersos. Podemos olhar de forma crítica e mais ampla todo o cenário. Essa é uma das tarefas da Sociologia.