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No texto a seguir, tecemos alguns comentários sobre o prólogo da trilogia “A era da informação: Economia, Sociedade e Cultura”, do sociólogo espanhol Manuel Castells, intitulado “A rede e o ser”, publicado nos anos 1990, trabalho que nos ajuda bastante a entender melhor nosso mundo atual. Não se trata de um resumo, fichamento ou trabalho acadêmico sobre a obra, são somente algumas reflexões e relações que me ocorrem enquanto leitor e que espero que sejam úteis.
Reestruturação global do capitalismo
No fim do milênio, as transformações sociais decorrentes do desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação se acentuaram. Em pouco tempo, as estruturas sociais mudaram radicalmente. Desenvolveu-se uma nova relação entre a economia, o Estado e a sociedade. Dessa forma, o mundo estava mais interligado e isso teve consequências para a forma de produzir e conviver em sociedade.
Até então, a comunicação frequente entre as mais diversas sociedades humanas não era nada inédito. A história está repleta de encontros entre culturas distintas. Entretanto, as condições para que esses contatos ocorressem geralmente eram precárias devido às dificuldades de comunicação e transporte existentes. O desenvolvimento e a disseminação dessas tecnologias, desde o seu início, vão derrubando essas barreiras.
No caso das transformações observadas por Castells já no prólogo de sua obra, intitulada “A rede e o ser”, as instituições sociais, ou seja, as regras que moldam nossa forma de ser e viver no mundo, se transformam, dado o surgimento de novas ferramentas que modificam nossas atividades diárias. Consequentemente, também mudam nossas relações com os outros e com a própria natureza.
A percepção de tempo e o espaço mudam
David Harvey, geógrafo inglês, na sua obra “A condição pós-moderna”, chama a atenção para um fenômeno típico deste período que podemos relacionar a esta leitura. A organização da vida muda a partir da nova relação que passamos a ter com o espaço e com o tempo. As distâncias são ressignificadas a partir das facilidades no deslocamento. O espaço geográfico deixa de ser um grande empecilho para as relações humanas. Transportar pessoas e mercadorias de um lado para outro do planeta se tornou possível, e desde então, um processo cada vez mais rápido. Por outro lado, o tempo se expande por meio das tecnologias de informação. Enviar uma mensagem para qualquer lugar do planeta se tornou algo em tempo real, com aparelhos como o telefone, o fax. Tudo isso por meio da comunicação por satélite.
A forma de produzir mudou. A descentralização da produção e a terceirização da mão de obra passaram, desde então, à ordem do dia. Se tornou possível produzir em outro continente, ter a sede da empresa em outro e vender para qualquer lugar do mundo. Nas palavras de Castells, deste processo emerge uma sociedade capitalista e informacional.
Essa mudança afeta diferentes partes do mundo de maneira diferente. Em poucas décadas, o brilho atribuído à globalização desvanece e sua configuração social problemática se torna patente. E logo surgem alternativas, nem sempre melhores, conforme possamos refletir atualmente.
A popularização da internet
O envio de cartas, o telégrafo e posteriormente as linhas telefônicas, gradualmente, foram permitindo uma maior integração mundial. Possibilitaram a ampliação das relações sociais de forma geral, e as de produção e consumo, em particular. Já se negociava largamente em escala global desde o mercantilismo. Mas a partir da década de 1970 do século XX, esse processo deu um salto. Uma das ferramentas tecnológicas mais poderosas já criadas pela humanidade, a internet, começava a se popularizar. A rede e o ser se encontram.
Inicialmente uma ferramenta de uso militar, cujo objetivo era descentralizar e guardar informações sensíveis ao mesmo tempo, em vários lugares, em caso de guerra. Depois se tornou muito usada nas universidades, dado que também nasce em ambientes de pesquisa acadêmica, e nesse período, se desenvolveu de forma mais ou menos anárquica e libertária, no contexto do mundialmente conhecido Vale do Silício. Já nos anos 1990 começa a se popularizar entre parcelas crescentes da população. Aparecem os provedores de internet que dão acesso a contingentes populacionais crescentes. A partir daí, a descentralização em andamento foi amplificada em escala gradativa.
A lógica da internet mudou bastante desde a sua criação até ser apropriada por grandes empresas que, atualmente, monopolizam o acesso à informação e moldam nossas personalidades, nos guiando por um circuito fechado de consumo. Poucos anos depois, perguntar para alguém quando ela se conectava ou quanto tempo ficava conectada não fazia mais sentido. Estávamos quase todos conectados 24 horas por dia. E cada vez mais, atividades cotidianas das nossas vidas estavam sendo desenvolvidas ou intermediadas por meio da internet. O consumo é uma dessas principais atividades. Logo, o acesso se expande, inclusive para os que vivem em condições mais precárias.
Quando Castells publicou seu texto, essa condição ainda não era a realidade de todos, ou pelo menos, ainda não era como nós a percebemos hoje. Uma vez que, atualmente, a realidade social decorrente da vida nesses novos ambientes digitais se tornou o espaço no qual nós mais nos conectamos a outros seres humanos. A rede e o ser, talvez não existam mais um sem o outro.
A rede e o ser na sociedade informacional
A sociedade informacional é uma sociedade capitalista, que se reinventa a partir do uso das tecnologias. A partir dessa simbiose, passamos a viver em outro contexto. Nele, o acesso à cultura, ao entretenimento, ao conhecimento e ao próprio trabalho é diferente. Entretanto, ironia das ironias, pode ser que esse amplo processo de criação de redes digitais e todas essas formas de iteração por ele possibilitadas tenham, de certa forma, contribuído para afastar as pessoas.
Uma das questões particularmente relevantes desse processo diz respeito à construção das identidades sociais. Antes, elas se constituíam localmente, mas com o acesso a um universo cultural tão amplo, as referências sociais passaram a ser globais. Anteriormente, ao se desenvolver, o indivíduo tinha como referência aqueles que viviam no seu entorno, na sua comunidade. Com as redes, essa comparação passa a ser global. Isso eleva bastante as expectativas individuais, e acabou por gerar problemas sérios, que outros autores nas décadas seguintes estudaram com mais profundidade.
No quadro geral, com essa perda de referência, os indivíduos passam a ter na identidade uma das únicas fontes de significado da vida. A grande abertura que a internet possibilitou, e que foi tão saudada como a nova ágora digital, na verdade, causou uma desestruturação das instituições sociais, como nós as conhecíamos, e da própria identidade dos indivíduos.
As próprias políticas e ações sociais passaram a ser desenvolvidas a partir das identidades. Assim, se antes se falava de luta de classes, interesses dos trabalhadores, desenvolvimento de políticas voltadas ao bem-estar social, indistintamente entre os diversos grupos sociais, essa tendência mudou radicalmente. Desde então, há uma tendência de ampla desestruturação das organizações, com o enfraquecimento das instituições sociais e a desarticulação dos movimentos sociais. É como se o foco das relações saísse dos grupos e fosse focado nos indivíduos. Este é o contexto de “A rede e o ser”.
O que veio a seguir…
Enfim, é particularmente interessante ler a “rede e o ser” atualmente, pois percebemos as mudanças ocorridas de forma mais clara. Vários problemas tão comuns atualmente já se colocavam naquela época. Outros autores, como Zygmunt Bauman, com a sua discussão sobre a modernidade líquida, e Byung-Chul Han, com a sua Sociedade do cansaço, nos ajudam a compreender o que veio acontecer depois e o que vivenciamos agora em tempos de smartphones.